Quando elas esperam


Adaptação e concepção: 
Dirce Waltrick do Amarante
Tradução de excertos de Esperando Godot: 
Fábio de Souza Andrade
Direção: 
Fabrício Bogas Gastaldi
Atrizes: 
Cinderela: Lílian Zoldan
Branca de Neve: Maíra Castilhos 
Sonoplastia: 
Bruno Shigeo
Grupo teatral:
Ciclopatas



O que Cinderela e Branca de Neve esperam?
Dirce Waltrick do Amarante


Quando elas esperam é uma adaptação da peça Esperando Godot, de Samuel Beckett, escrita em 1949 e publicada pela primeira vez em 1952. Originalmente pensada para o palco, diante da pandemia e da necessidade de isolamento social, ela foi transformada em uma peça radiofônica, ideia da atriz Maíra Castilhos, a qual já havia atuado em outras trabalhos do gênero.

Em Quando elas esperam, as personagens centrais da peça de Beckett, Estragon e Vladimir, se transformam em duas mulheres, o que não é novidade em montagens dessa obra beckettiana, que já foi encenada de diversas formas: apenas por negros, durante o apartheid, por internos de uma prisão em Sarajevo, por um elenco exclusivamente feminino etc. 

Na montagem proposta pelo grupo Ciclopatas, Estragon é Cinderela e Vladimir é Branca de Neve. O que as duas esperam? Um príncipe encantado, um homem que lhe devolva a vida, no caso de Branca de Neve, ou que a tire da miséria que é sua vida, no caso de Cinderela. Se nas histórias infantis esses príncipes aparecem e salvam as donzelas em perigo, em Quando elas esperam nada acontece. E era isso que queríamos discutir, nesses dias estranhos que vivemos no Brasil, nos quais, idealmente, meninos vestem azul e meninas vestem rosa, ou em que mulheres são vistas como “belas, recatadas e do lar”, num retrocesso que remeteria à “mística feminina”, tão discutida por Betty Friedan em seu livro homônimo, publicado no Estados Unidos da América em 1963.  
Friedan afirma que, quando as mulheres passaram a se tornar independentes, criou-se uma nova imagem delas que destruiu “seu voo solo para encontrar sua própria identidade” e “seu mundo aconchegante se encolheu entre as paredes aconchegantes do lar”. Essas mulheres sem voz e sem self viviam a vida dos outros e passaram a ser representadas pelos outros (maridos, filhos). Esperamos que nosso retrocesso não nos leve de volta aos anos 1950.
Há que se destacar que as paredes aconchegantes do lar não são para todas as mulheres; são para a mulheres burguesas, na sua maioria brancas, como lembra bell hooks, pseudônimo de Gloria Jean Watkins, que incorporou ao pensamento feminista a inter-relação entre gênero, raça e classe social e com isso mudou a orientação destes estudos: “deixamos de insistir na opinião simplista de que ‘homens são o inimigo’, somos compelidas a examinar os sistemas de dominação e nossa contribuição para a sua manutenção e perpetuação”. 
A impressão que se tem é a de que, nas sociedades onde a diferença de classes é grande e onde se prima pela perpetuação de hierarquias econômicas, como a brasileira, insiste-se mais em atacar o feminismo ou então se procura reforçar apenas a contraposição entre homens e mulheres com o fim de obscurecer outros temas importantes que o movimento desperta e que podem abalar a política de opressão vigente.
A escolha de duas “princesas” que a Disney incorporou tem uma relação também com a obra do artista norte-americano Paul McCarthy (1945), mais especificamente com a instalação/performance WS (White Snow/ Branca de neve). Na obra WS, o que o público vê é uma casinha inacessível no meio de uma floresta típica dos contos de fadas dos irmãos Grimm (uma das muitíssimas referências do artista norte-americano). Na frente da floresta, outra casa, essa acessível, com pequenas janelas que recebem o olhar curioso dos espectadores, que atuam como voyeurs e espiam o que acontece entre as quatro paredes de uma casa a princípio bastante comum.
Ao redor disso tudo, em grandes telões, vídeos exibem uma orgia da qual participam duas brancas de neve, sete anões e Walt Disney, interpretado pelo próprio Paul McCarthy. Pelos telões, acompanha-se a festa. No interior da casa, vê-se o resultado dela: a pós-orgia é retratada por imagens muitas vezes chocantes e repugnantes.
O interesse de McCarthy pelas personagens do universo infantil dos filmes da Disney é antigo. Em Pinóquio (1994), o artista se veste como o boneco para representar uma figura paternal excêntrica que introduz um líquido através das narinas de uma criança indefesa representada pela figura do bonequinho de madeira.
A obra de McCarthy faz uma crítica feroz a uma sociedade que ele vê como deturpada, doente, consumista, mas disfarçada de personagens inocentes.  
Quanto ao título da peça, Quando elas esperam, este faz referência ao filme do diretor sueco Ingmar Bergman, que estreou no mesmo ano da publicação de Esperando Godot, em 1952. No filme, em uma casa de campo, quatro mulheres, cercadas de crianças, esperam seus maridos voltarem. Enquanto eles não voltam, elas lembram do passado, de seus encontros e desencontros com os parceiros; ou seja, até eles chegarem, não existe presente nem futuro; apenas passado.
Desse modo, tínhamos, além de Beckett, duas outras referências: o filme de Bergman e a instalação de McCarthy. Partindo dessas referências, o diretor, Fabrício Gastaldi, optou por transformar Cinderela em uma personagem de desenho animado, que está mais para uma minion, numa referência a Meu malvado favorito: ela não pensa nem age e está sempre num tom acima do tom dos outros personagens. Já Branca de Neve foi pensada como uma das personagens de Bergman.
As personagens de Quando elas esperam estariam então em “produções” diferentes, em sintonias diferentes, o que acaba por destacar os famosos “falsos diálogos” ou “falsos monólogos” de Samuel Beckett, nos quais as personagens parecem falar mais consigo mesmas do que com seus interlocutores. 
  Há muitas falas escritas pelo próprio Beckett que cabem na boca de Cinderela e de Branca de Neve, bastando apenas uma pequena modificação. Na cena original, por exemplo, basta substituir a bota por um sapatinho de cristal para que Estragon assuma outra personalidade. 
 Esta peça radiofônica é uma experiência em tempos complicados. Todos os ensaios foram realizados on-line e, sem um estúdio para gravação da voz, uma das atrizes gravou no banheiro de sua casa e a outra no armário de seu quarto. 
Esperamos nos ver no palco em breve.
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A peça é um trabalho do grupo teatral Ciclopatas, de Florianópolis, que se dedica a levar para o palco adaptações da obra do escritor irlandês, sem excluir montagens de outros textos da vanguarda do início do século XX, como de Gertrude Stein e do teatro futurista italiano.